quarta-feira, 11 de setembro de 2013

CRÍTICA DE KIL ABREU SOBRE RELAMPIÃO


CRÍTICA TEATRAL 

CANGACEIROS DO ASFALTO, 

RE-LAMPIÕES DA REVOLTA 



(POR KIL ABREU)

Não poderia ser outro senão o espírito de bando, de trupe, o que irmana a intervenção das Companhias do Miolo e Paulicéia, de São Paulo, nesta retomada poética do mito de Lampião. É excelente e muito sugestivo o nome do espetáculo, que remete tanto ao verbo relampejar quanto ao neologismo popular formado por derivação deste, relampiar. Ou, se quisermos, pelo substantivo Lampião (aquilo que ilumina, ou o próprio personagem histórico mesmo), a que se acrescenta o prefixo re, que indica repetição. Nesse sentido aí um relampião seria , portanto, uma volta a Lampião ou deLampião, bem como um estrondo luminoso, ou re-estrondo, um novo intenso e breve clarão, uma nova, momentânea luz.



Em qualquer caso, no espetáculo permanece o sentido das vozes que explodem em revolta, que não estão reunidas para contar uma vez mais a história do cangaço, mas para contrastar seu espírito com os deserdados de hoje, personificados no lúmpen urbano de errantes, desempregados, subempregados, artistas perdidos na cachaça ou na amargura alimentada pelas dobras difíceis da vida. Sob a informação extra-ordinária do próprio Virgulino Ferreira, revivido, ou de um assum preto que entoa o cancioneiro popular enquanto provoca corações e mentes, essa gente é instigada a fazer arma da amargura para, como aquele, ir à luta.



A dramaturgia de Solange Dias é uma beleza de escrita. Sem heroicizar e pondo a nu as contradições das personagens, alinhava aproximações e filosofa com precisão admirável sobre fatos e histórias de tempos diferentes, em síntese épico-poética que arrebata em um mesmo movimento o melhor da fala desobediente de antes ao estado das coisas no agora. Perfaz entre outras coisas, em crescente tomada de consciência, o encorajamento à assunção da responsabilidade sobre os rumos da própria história, no sentido dos percursos individuais tanto quanto do coletivo.



O fundamental na encenação de Alexandre Kavanji (direção geral) e Renata Lemes (direção de atores) é o trabalho dedicado para criar a indispensável ânima bem afirmada que a montagem pede sem perder de vista as nuances de pensamento. Em Prudente um detalhe técnico, a qualidade da amplificação das vozes aos microfones, tendeu a comprometer este equilíbrio, sobretudo para quem se manteve próximo às caixas de som. De um lugar mais afastado, porém, era possível ouvir melhor e com mais clareza o texto e observar o bom desenho na marcação, que segue em evoluções coreográficas e musicais estudadas e orgânicas ao fundamental do que está sendo explorado em cada passagem. Dinâmica bem amparada na direção musical de Charles Raszl.



Um elenco que vai para a cena de peito aberto, mas com noção clara sobre as medidas da atuação, faz toda a diferença. Sem nenhuma exceção são muito bem conduzidas, nos trabalhos físicos e vocais, as modulações no estado das personagens, que transitam do prostrado ao desejo inadiável de mudança, do lamento pessoal ao sangue nos olhos que, reconhecido como um sentimento não ilhado, aponta o princípio de convulsão social. É uma trupe valente formada por Aysha Nascimento, Antonia Mattos, Daniel Farias, Dudu Oliveira, Edi Cardoso, Francisco Gaspar e Harley Nóbrega, na companhia dos músicos Daniel Rodrigues e Glauber Coimbra. Ainda que haja desempenhos individuais com momentos aqui e ali mais brilhantes, todos têm passagens em que uma intervenção mais proeminente é pedida, e nenhum deixa de aproveitar a sua hora vital, o que garante à montagem um equilíbrio na sua função mais importante em se tratando da cena de rua. No conjunto, é o sentido bem afirmado da energia do bando o que garante a teatralidade .



Diante do rendimento estético mais que razoável, que compõe a bonita paisagem que o teatro de rua representa hoje em São Paulo, resta elogiar não apenas o acabamento formal do espetáculo, como também as suas motivações e escolhas. Pois o ponto de vista do qual a narrativa se conta é, antes de tudo, indicativo de uma posição, de uma afirmação sobre de que lado estão estes artistas, em uma época na qual nos querem fazer crer que só existe um lado e que por isso a expectativa sobre enfrentamentos e sobre mudanças profundas é coisa que ficou para trás. As companhias do Miolo e Paulicéia, com seu teatro desassossegado e em sintonia com certo sentimento “espírito de porco” que volta a contaminar a época, riscam o chão, relampiam a cena e nos lembram, com seu estrondoso chamado, que não é bem assim.

Fonte: Assessoria de Imprensa XX FENTEPP






FOTOS NO CAMELÓDROMO FERNANDO MARTINEZ








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